Deitado em seus aposentos, localizados bem próximos a base da muralha,
olhava fixamente para o teto de pedra finamente decorado com afrescos retratando
os santos martirizados rodeados por arabescos complexamente desenhados e com
cores berrantes. Desde sua infância, quando ouvia as histórias contadas pelos
mais velhos ao narrarem os feitos heroicos deles e de seus companheiros de
batalha, desejava estar ali.
Comandar aquela guarnição era o ápice de uma carreira militar firmemente
assentada no sacrifício, na devoção, na coragem, na destreza em combate –
provada em muitas batalhas – e na fé religiosa inabalável.
Como o comandante mais novo de todo o contingente templário, algo o
assustava mais do que qualquer combate: justamente essa sua fé inabalável, que
o trouxera até ali, se esmaecia a cada dia em que mergulhava naquela
carnificina sem sentido e na coleção de mentiras na qual se transformara aquela
Cruzada.
Mesmo tendo jurado obediência aos desígnios de seus superiores e do Papa,
não podia deixar de se perguntar se o Cristo se aprazia realmente com aqueles
massacres e com toda a fúria e ódio que ele presenciara.
Somente ali, no silêncio e na penumbra de seu quarto, podia se permitir
duvidar de sua fé, de sua honra e de suas habilidades como guerreiro e líder.
Mas, mesmo sendo o mais vitorioso de todos os combatentes templários, imaginava
quais os motivos reais estariam por trás de tantas mortes e tanta dor.
No fundo de seu coração, a ideia de poder ter sua alma condenada ao fogo
do inferno por um capricho de outros o atormentava cada vez mais
frequentemente.
Tudo o que ele ouvira enquanto treinava para estar ali, as histórias de
heroísmo e abnegação e a moralidade inabalável de seus superiores haviam se
convertido em um monte de mentiras. As violências, os massacres, a falta de
respeito com os derrotados e com os mortos e a selvageria incivilizada
constantemente atribuída aos sarracenos nunca foi provada em batalha. Muito
pelo contrário, toda a violência sem sentido, as violações dos princípios
morais da guerra e os massacres mais hediondos eram cometidos sempre pelos
Cruzados. Como dizer então que eles estavam ali cumprindo a vontade de Deus?
Perdido nesses pensamentos, que lhe garantiriam uma morte lenta e
torturante se viessem à tona, nem percebeu o alvoroço que começava a se formar
no pátio da fortaleza. Absorto em seus próprios problemas e consumido pela
culpa, o guerreiro honrado e poderoso sentia-se derrotado e acovardado pela
culpa e pelas incertezas. Sua consciência atormentava sua alma e os pensamentos
sombrios há muito não permitiam que descansasse em paz como devia.
De repente, um enorme estrondo seguido por um tremor tão intenso que fez
toda a grossa muralha parecer oscilar por um instante percorreu cada canto da
fortaleza e despertou o guerreiro de sua letargia. Uma confusão crescente,
recheada de gritos, do som de armas se enfrentando e de urros de dor; levou ao
jovem comandante a inequívoca mensagem de que uma nova batalha se iniciava.
Vestiu sua armadura, com a ajuda de seu fiel servo, e abandonou seus aposentos
indo em direção ao pátio da fortaleza.
Chegando lá, percebeu num simples relance que a batalha já estava
perdida. O estrondo ouvido e o tremor sentido nada mais eram do que o fruto do
trabalho dos sapadores sarracenos. Usando as mesmas técnicas que ele vira em
outras batalhas, os soldados haviam solapado – sem que ninguém desse conta
disso – as fundações de parte da muralha e causado o seu desabamento. Pelo
enorme buraco formado, uma horda de sarracenos invadiu a fortaleza como uma
onda humana sem fim.
De onde estava, o guerreiro sabia que a pequena guarnição estava
condenada e seria subjugada em pouco tempo. Chamou seus servos e ordenou-lhes
que abandonassem a fortaleza pelo túnel cavado atrás da pequena capela e
levassem com eles os feridos e os que mais quisessem.
Olhou em volta, enquanto subia no cavalo, feliz por finalmente seu
sofrimento terminar (em breve estaria diante de Deus e saberia se seus atos
eram verdadeiramente honrados ou não). Com uma oração, partiu a galope para o
meio da confusão mortal que já tomava conta do pátio da fortaleza.
Saltou sobre as frágeis barricadas erguidas pelos seus companheiros
combatente a pé e afundou num enorme mar de homens irados, lanças, espadas e
escudos que se enfrentavam ferozmente. Desaparecendo no caos da batalha, seu
cavalo foi mortalmente atingido por uma lança sarracena e o derrubou da cela.
Combatendo desmontado, aos poucos fez abrir uma clareira havia mergulhado
na horda sarracena, por trás das barricadas seus comandados assistiam com um
misto de terror, orgulho e admiração a destreza em combate do líder fazendo
cair por terra os corpos agonizantes e destroçados de seus inimigos. Mesmo com
toda confusão do calor do combate, os defensores sentiam uma certa paz de
espírito ao se defrontarem com a morte certa sabendo que seu comandante
mostrava-se tão obstinado quanto heroico.
Num determinado momento, ouviu-se um grito tão alto que sobrepujou todo
aquele ruído de metal se chocando; urros de dor dos feridos e moribundos e o
som agourento dos lamentos dos covardes. Parte da horda sarracena recuou e
postou-se em fileiras a frente do enorme buraco feito na muralha.
Corpos mutilados, de ambos os lados, jaziam em toda parte, formando
montes de carne, entranhas e ossos expostos que exalavam aquele terrível cheio
de sangue e do conteúdos das tripas rasgadas dos feridos. De pé, bem no centro
de um desses montes, o cavaleiro templário fincou o pé no chão enlameado pela
mistura de pó, sangue e dejetos.
Ofegante, olhou a sua volta. As barricadas, já rompidas, estavam repletas
de corpos e uma pequena fração da sua guarnição estava encurralada pouco atrás
de onde ele estava. Simplesmente não imaginava por quais motivos o ataque
sarraceno se detivera. A vitória era clara e definitiva.
Foi quando ele ergueu os olhos para a figura imponente, trajada com a
riqueza de um nobre e montada em um cavalo tão negro que parecia exibir um
brilho azulado como uma leve aura mágica.
Parado a poucos metros dele, o homem no cavalo sorriu e cumprimentou o
jovem templário – usando palavras que ele podia compreender – pela sua destreza
em combate e pela sua enorme coragem.
Falava com uma sinceridade cativante e uma serenidade própria dos homens
que já viveram muito e aprenderam mais ainda com a dureza da vida. Perguntou
seu nome e o jovem templário respondeu sem baixar seu escudo e sua espada.
O nobre sarraceno, sorriu mais uma vez – como um pai faria diante de um
filho querido – e gritou, anunciado o nome do jovem, para que todos pudessem
ouvir.
Um murmurinho percorreu a multidão de sarracenos. Olhares assustados e admirados
eram trocados, ao mesmo tempo que gritos de guerra e evocações a Alá estouravam
aqui e ali. Acuados num canto do pátio, o pequeno grupo de cruzados
sobreviventes, não conseguia compreender o que estava acontecendo e já
imaginavam se seriam queimados vivos ou torturados até a morte pela horda que
gritava enfurecida e se agitava cada vez mais.
O nobre ergueu sua mão e todas as vozes se calaram ao mesmo tempo. Um
silencio respeitoso tomou conta da velha fortaleza e só a voz grave e potente
dele era ouvida:
- “Sua honra, sabedoria, humildade e respeito aos
vencidos é conhecida de seus inimigos. Sua queda em combate seria uma grande
honraria para mim ou qualquer um de meus homens. Mas, em respeito a tudo em que
acredito e ao seu comportamento, sempre magnânimo, com meus irmãos derrotados
por você; eu permitirei que deixe a fortaleza com vida, juntamente com o que
restou dos seus soldados. Basta, para isso, que derrote meu campeão em um
combate justo”.
O jovem templário, ofegante e coberto de sangue, sabia que talvez não
tivesse mais forças para combater um soldado descansado e bem treinado. Mas,
como aquela era a única chance de seus homens e dele mesmo; aceitou o desafio
do nobre. Gritou, o mais alto que pode, que estava pronto.
A horda sarracena gritou em uníssono e começou a bater nos escudos
enlouquecida pela antevisão do espetáculo. De trás das fileiras, que agora
cercavam todo o interior da fortaleza e se tornaram quase num aglomerado
compacto de corpos, escudos e espadas, surgiu um enorme sarraceno com a pele
coberta por cicatrizes, braços extremamente fortes e pernas que pareciam dois
pilares de construção.
Em seus olhos o templário podia ver o ódio inflamado e o desdém que o
inimigo sentia. Sem se acovardar, postou-se em posição de combate e chamou o
seu oponente enfurecido para a luta.
A espada do campeão sarraceno brilhou no ar e encheu todo o lugar com o
um som metálico ao encontrar a do templário que aparou o golpe. Os urros e
gemidos de ambos os combatentes eram os únicos sons ouvidos naquela cena, além
do bater do aço e o encontrar de escudos.
O combate se prolongou por vários minutos e ambos já mostravam sinais de
cansaço. O jovem templário estava em pior estado e sentia, cada vez mais, a
dureza e a força dos golpes de seu oponente. Uma dor terrível percorria seu
corpo e reverberava em cada fibra muscular como um enorme tambor. Sua cabeça
pulsava, como se fosse prensada por dezenas de tenazes. Seus olhos eram
encobertos pelo suor e sua visão ficava embaçada pelo enorme esforço de
defender-se dos golpes constantes e arrasadores.
Num deslize do jovem templário, provocado pelo cansaço do combate e pelas
dores atrozes, a espada sarracena atingiu-lhe o braço, sobre a cota de malha,
derrubando-o. O sangue corria pelo ferimento aberto e seu braço pendia
inutilizado. Agora, o fim estava próximo – pensou o templário – sem poder usar
o escudo, seria questão de pouco tempo até o golpe fatal.
Diante da plateia que assistia a tudo com a respiração contida, metade
delirante e metade estarrecida, o sarraceno acertou um golpe de sorte que fez a
espada do jovem templário voar para longe. No mesmo instante, um único
pensamento surgiu na mente do jovem guerreiro: “é o fim”. Exaurido pelo
combate, ferido gravemente e sangrando muito; caiu de joelhos e ergueu a cabeça
para aguardar o golpe final.
O campeão sarraceno aproximou-se – embalado pelos gritos vitoriosos da
horda enlouquecida – ergueu sua espada e, com toda força, desferiu um golpe
mortal visando o pescoço do jovem templário. A lâmina reluziu ao sol; desceu
velozmente e – diante da multidão incrédula – parou no ar a poucos milímetros
da garganta do templário caído.
O sarraceno, sem compreender o ocorrido, colocou toda a sua força na
lâmina pressionando-a contra a garganta do jovem e, mesmo assim, a espada não
fazia mais, golpe após golpe, do que deter-se antes de tocar o homem.
Aos gritos de feitiçaria e confusos pelo ocorrido, dois outros soldados
sarracenos atiraram flechas em direção ao corpo do guerreiro ferido. O nobre,
ao perceber o ocorrido e furioso pelo comportamento desonroso dos seus, fez um
gesto e ambos foram mortos imediatamente por seus próprios colegas.
Simultaneamente, as flechas atiradas contra o jovem ajoelhado naquele pátio
interromperam seu voo como se fossem detidas por mãos invisíveis.
Os sarracenos recuaram assustados e, sem saber o que estava acontecendo,
ficaram aguardando as ordens do nobre.
Este, com os olhos marejados pelas lágrimas desceu de seu magnífico
cavalo e, aproximou-se do guerreiro ainda caído.
Carinhosamente, abraçou o jovem, o ergueu do chão e colocou as rédeas do
magnífico cavalo em suas mãos. Ao se voltar para partir, o nobre disse:
- “Eu sou Salah al-Din Yusuf ibn Ayub.
- Vocês me
conhecem como Saladino. Aquilo que presenciamos aqui hoje é mostra de que Alá
protege o justo, o misericordioso e o honrado. Se Ele não deseja a sua morte,
quem sou eu para ir contra a Sua vontade. Vá em paz, irmão, e que Alá guie seus
dias e olhe pelo seu regresso ao lar e para junto dos que ama”.
Dizendo isso, deu as costas para o jovem incrédulo e, montando em outro
cavalo, retirou-se rapidamente com toda a horda sarracena.
Os soldados correram para ajudar o jovem templário e o colocaram junto a
sombra de uma enorme tamareira. Ao removerem seu elmo, perceberam que ele chorava.
Sua mente era tomada por pensamentos conflitantes que o tragavam para um
redemoinho de emoções.
Deus salvou a sua vida e, no mesmo golpe, mostrou que os homens – mesmo
quando rezam para um Deus diferente – podem ser justos, bons, e honrados.
Ainda havia esperança para sua alma e, imediatamente percebeu que jamais
esqueceria daquele nobre sarraceno que trouxera a luz de volta a sua vida e a
paz a sua alma.
fonte -
contos ancestrais
Arthurius Maximus
Amigo anonimo, eu nao escrevi esse texto, apenas publique o memso no blog. rsrsrs
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