sexta-feira, 10 de outubro de 2025

O Triponto na Maçonaria Brasileira

 Desmistificando uma Convenção Tipográfica Francesa


        O triponto maçónico não passa de uma convenção tipográfica francesa. Ponto. Mas não, senhores: preferimos inventar interpretações esotéricas dignas de um esoterismo de almanaque. Aí vem o irmão, de avental e luvas brancas, jurar de pés juntos que o triponto representa os três graus simbólicos, ou o Esquadro e Compasso com o Livro da Lei, ou — pasmem — as pirâmides de Quéops, Quefren e Miquerinos. Alguns, em surto místico-quântico, chegam a falar em protões, electrões e neutrões. Pelo amor de Deus!

Isso é o que chamo de senso comum maçónico: uma espécie de vulgata interpretativa que naturaliza práticas regionais como se fossem universais, essenciais, ontológicas. É a nescionaria em operação — esse ritual do não-saber que se traveste de conhecimento profundo. É importação acrítica. É viralatice hermenêutica.

A verdade — essa coisa simples, essa obviedade solar — exige que voltemos às origens. Antes de 1700, não existia triponto maçónico — existiam apenas reticências ou pontos abreviativos usados em manuscritos latinos. Desde os escribas romanos, os grupos de pontos e sinais de abreviação eram ferramentas gráficas, não místicas. Adriano Cappelli documenta o seu uso sistemático no século XIII (Lexicon Abbreviaturarum, Milano, Hoepli, 1899), e o próprio Justiniano já as restringia no Corpus Juris Civilis (Digesto, XLVIII, 10, 32), no século VI. Philippe le Bel chega a proibi-las formalmente em 18 de Dezembro de 1304 (Ordonnance) — o que mostra que o problema era paleográfico, não metafísico.

O triponto maçónico propriamente dito nasce na França iluminista. A mais antiga menção conhecida está nos registros da loja La Sincérité, Oriente de Besançon, de 1764, onde aparecem fórmulas abreviadas como GODF (conforme Chapuis documenta em Histoire du Rite Écossais Ancien et Accepté, Paris, Guy Trédaniel, 1989, p. 21). O Grande Oriente da França, segundo Jean-Marie Ragon, Orthodoxie Maçonnique (Paris, Bailleul, 1853, p. 214), em 12 de Agosto de 1774, oficializa a prática em circular administrativa.

 Ou seja: o triponto é inovação iluminista, não legado atlante. Esta padronização coincide com a reorganização burocrática do GOdF sob o Grão-Mestre duque de Chartres, o que explica a ênfase no aspecto documental e caligráfico, não ritual.

O costume de abreviar palavras, cumpre lembrar, surgiu com os gregos e foi extensamente explorado pelos romanos, que criaram inclusive a regra de duplicar a letra inicial nas abreviações de termos no plural — regra ainda existente na abreviação maçónica. Se sempre adoptadas em actas e sinalizadas por traços, barras ou reticências, é natural que nas actas maçónicas francesas as abreviações ganhassem um sinal correspondente com a instituição: uma variação das reticências lembrando o símbolo geométrico mais importante, o Triângulo. Não demorou para que, pelo costume da escrita e exclusividade do uso, o triponto ultrapassasse a sua utilidade caligráfica e alcançasse a assinatura dos Irmãos.

Simples assim. Sem mistério. Sem Egipto. Sem alquimia. Sem física quântica. É convenção paleográfica, não cosmologia iniciática.

Mas o (Maçom) brasileiro — ah, o brasileiro! — na sua condição periférica, recebe o Rito Escocês Antigo e Aceito de matriz francesa e naturaliza tudo: o triponto vira “essência” da Maçonaria. Converte regionalismo em universalismo. E aqui está o problema central: o triponto não é universal. Nunca foi. Nunca será.

A tripontuação é inexistente nos manuscritos da Grossloge von Hamburg (1801) e da Observância Draskovic (1775). O Schrödersche Lehrart (Hamburgo, 1801) de Friedrich Ludwig Schröder (Hamburg, 1801) não apresentam triponto. Nenhum manuscrito da Grande Loja de Hamburgo o utiliza.

Systema Constitutionis Latomiæ Libertatis da Observância Draskovic (Zagreb, 1775) é redigido em latim clássico, sem qualquer uso de pontos triangulares — as abreviações seguem o modelo jurídico latino (MM. para Magister, etc.). A Observância utilizava código especial para correspondências baseado em letras-chave por grau (T, N, E), mas jamais usou o triponto. Os seus documentos seguiam convenções paleográficas centro-europeias. A simplicidade tinha motivação prática: sigilo absoluto em contexto de repressão imperial. As lojas reuniam-se em locais variáveis, inclusive “em campos e florestas”, onde “com algumas mesas, cadeiras, três velas, papel, canetas e tinta” formavam uma Loja perfeita.

Não havia triponto porque não havia necessidade de triponto. A tradição linguística e tipográfica era outra.

As lojas anglo-saxónicas usam abreviações lineares, sem triângulo. Os Proceedings da United Grand Lodge of England (fundada em 1813) não possuem triponto — as abreviações são lineares e separadas por pontos simples (G.L., R.W., W.M.). Os Transactions da Grand Lodge of Pennsylvania (desde 1731) tampouco adoptam o formato francês. A França a inventou; o resto do mundo, com razão, a dispensou.

Mas isso não importa para o fundamentalismo “tripontista” brasileiro, que trata esse acidente histórico como se fosse dogma revelado no Monte Sinai.

E o delírio místico sobre o triponto nasce cem anos depois do seu uso. Ragon (1853) nunca lhe atribuiu valor simbólico universal — apenas registrou a prática como convenção administrativa. Foi Oswald Wirth, em Le Livre du Compagnon (1894, p. 51), quem começou a associar o triângulo equilátero à divindade, influenciado pelo simbolismo hermético de Éliphas Lévi — é aqui que nasce o mito simbólico do triponto. O simbolismo do triponto é invenção tardia. Desde então, cada repetidor multiplicou o eco sem retornar à fonte.

Gadamer, em Wahrheit und Methode, ensinou-nos que toda compreensão é situada, que carregamos preconceitos (no sentido hermenêutico, Vorurteil) que condicionam a nossa leitura do mundo. O problema é quando o preconceito vira pré-compreensão inautêntica: quando naturalizamos o contingente e perdemos a capacidade crítica. É exactamente isso que ocorre com o triponto na Maçonaria brasileira. Transformamos convenção francesa em universalidade maçónica. Esquecemos que a palavra clara é o verdadeiro instrumento da iniciação, e que a forma tipográfica é mero acidente histórico-cultural.

O triponto vira fetiche. Deixa de ser o que é — convenção tipográfica francesa de 1774 — e passa a ser tratado como coisa em si, como substância metafísica, como essência maçónica universal. O que começou como sinal tipográfico em 1764 virou fetiche iniciático em 1894. O erro não está no uso — está na crença.

Então, meus irmãos, sejamos honestos: a verdade é muito melhor do que imaginar que estamos desenhando Quéops, electrões ou enxofre quando assinamos. O triponto não é mistério sagrado. É convenção francesa. Respeitável? Sim. Legítima? Claro. Universal? Absolutamente não.

Confundir regionalismo gráfico com essência filosófica revela desconhecimento da real diversidade das tradições do Ofício. É colonialismo simbólico travestido de universalismo. É a crença de que só é Maçonaria “de verdade” aquela que replica o padrão francês, ignorando que vastas regiões da Maçonaria mundial — Alemanha, Hungria, Croácia, Inglaterra, Estados Unidos — nunca conheceram nem precisaram do triponto.

Portanto, quando assinar com o seu triponto, faça-o conscientemente: você está usando uma convenção tipográfica francesa do século XVIII, não um símbolo cósmico universal. E isso não diminui em nada o valor da sua assinatura nem da sua condição de Maçom. Apenas a torna historicamente situada — que é como as coisas são na vida real, fora do esoterismo de botequim que confunde convenção paleográfica com revelação iniciática.

Em resumo: há mais história do que mistério no triponto. O triponto não é símbolo universal — é a assinatura do provincianismo disfarçado de tradição.

Rui Badaró

ARLS Gotthold Ephraim Lessing nº 930, Or. de Sorocaba / SP, GLESP

Referências

  • CAPPELLI, Adriano. Lexicon Abbreviaturarum. Milano: Hoepli, 1899.
  • RAGON, Jean-Marie. Orthodoxie Maçonnique. Paris: Bailleul, 1853.
  • CHAPUIS, Paul. Histoire du Rite Écossais Ancien et Accepté. Paris: Guy Trédaniel, 1989.
  • LAXA, Eugene; READ, Will. “The Draskovic Observance.” Ars Quatuor Coronatorum, Vol. 90, 1977.
  • SZENTKIRÁLYI, Miklós; VÁRI, László. Szabadkőművesség Magyarországon. 
  • Budapest: Akadémiai Kiadó, 2018.